31 de agosto de 2014

Vidas passadas: No deserto (ação)

         Meu nome era Ahmad, forte, olhos e cabelos pretos, pele meio escura, barba negra tocando no peito e excelente cavaleiro. Manejava minha espada curva com maestria impondo respeito aos melhores espadachins do meu tempo.
Naquele dia usava turbante e túnica azul, calça branca e larga, botas altas até quase os joelhos e montava meu imenso e musculoso cavalo negro brilhante.
Cavalgava velozmente por uma planície do deserto escaldante composto de pedras e terra argilosa. A ponta solta do meu turbante azul agitava nervosamente ao vento denunciando a velocidade vertiginosa do cavalo e a poeira levantada pelas patas subia e se espalhava pelo ar como um rabo de cometa.
 Minha mão afagava freneticamente o cabo de minha espada e os meus olhos avermelhados denunciavam o ódio que carregava em meu peito.
A figura de um homem tomava conta de minha mente enquanto minha boca espumava de raiva e meu coração desejava fazer o sangue jorrar de seu coração transpassado pela lâmina de minha espada.
Ao longe começava a surgir a figura de sua casa no meio do nada. Construída estrategicamente no centro da planície deserta, deixava ver qualquer um que se aproximava a quilômetros de distância e a sua cor semelhante ao solo argiloso a deixava quase invisível ao olhar do inimigo menos atento, mas o ódio era mais forte que a cautela e sabedoria. A imagem da morada me fazia estimular ainda mais o garanhão desejando que ele pudesse voar.
O lar do ser odioso ia lentamente aumentando de tamanho e num olhar mais inquisidor me pareceu que uma nuvem de poeira levantou atrás da casa. A distância ainda não era propicia para um julgamento mais severo e logo pareceu que a poeira desvanecera no ar; talvez um pé de vento agitasse o pó secular.
Meus olhos fixos no caminho providencialmente desviava o cavalo dos buracos e rochas soltas, evitando um tombo perigoso, fazia o tempo avançar lentamente. De vez em quando uma rápida olhada na casa indicava estar no caminho certo.
Uma ave carniceira voava da linha do horizonte em minha direção parecendo sentir o cheiro do sangue derramado na minha imaginação.
Finalmente a casa surgia em minha frente e a poucos metros estanquei fortemente o garanhão que deslizou alguns centímetros levantando poeira e me cegou momentaneamente.
A habitação do desafeto recente tinha paredes muito grossas construídas com uma mistura de pedras, argila do solo local e água para não deixar entrar o calor escaldante do dia, o frio gélido da noite e manter a segurança quando os inimigos estiverem aqui fora.
Uma pequena janela, quase um buraco, em cada lado e apenas uma porta obstruída por uma grossa porta completava a segurança do forte domestico.
Circulei em volta sondando o ambiente e diante da porta saltei do cavalo com a espada numa mão e a adaga na outra. O silêncio reinava lá dentro e aqui fora só o resfolegar do corcel negro. Lá atrás da casa uma espécie de baia mal feita e coverta por galhos, que devem ter vindo de muito longe, estava vazia. Estaria denunciando a ausência do dono?
A porta estava aberta e apenas uma cortina de couro isolava o interior do resto do mundo. A ausência do cavalo e a porta aberta: seria uma emboscada? Pensei comigo e cautelosamente levantei a cortina com um cajado quer achei jogado ao lado da entrada e a muito abandonado ao capricho do tempo.
Entrei sorrateiramente e assim que meus olhos acostumaram com a semiescuridão avistei no centro uma armação de ferro fundido usada como fogão que deixava sair uma leve fumaça de estrume de cavalo seco queimando em um buraco no chão abaixo dela.
No fundo do recinto sem divisões uma silhueta delgada e feminina dormia desavisada, inocente e indecentemente numa grande cama de palha coberta por pedaços de couro. Um tecido de lã cobria o corpo, mas o rosto e pernas estavam descobertos.
Com o bico de minha bota dei-lhe um chute numa das pernas à mostra e gritei:
― Levante sua indecente!
A dor e a surpresa a fez ficar em pé num piscar de olhos. A manta que a cobria caiu revelando seu corpo nu e ainda esfregando uma mancha vermelha na coxa tentou correr para fora aos gritos.
― Onde pensa que vai infiel!
 Dei-lhe novo pontapé que a fez cair em minha frente de pernas abertas. A luz que entrava por uma das janelas refletia diretamente sobre seu ventre mostrando a beleza de seu corpo feminino.
Diante de sua beleza revelada pela luz fiquei momentaneamente sem ação e sem querer falei em voz alta:
― Nossa! É mais jovem e linda que a mais bonita de minhas mulheres!
Seu corpo estava petrificado de terror e ela não soltou um som sequer, o que a fez ainda mais bonita.
― Quem é você? Onde está o homem da casa?
― M-Meu m-marido devia estar aqui? N-Não o viu?
― Se pergunto por ele é porque não!
Lembrei-me da nuvem de poeira que pensei ter visto atrás da casa quando ainda estava muito longe.
― O covarde fugiu! Tão covarde que abandonou a própria esposa.
De repente ela percebeu que estava nua e tentou pegar a manta, porém pisei rapidamente sobre sua barriga não a deixando se mover. Ela gritou de dor, mas o sangue ferveu em minhas veias por ele ter fugido e insensível apertei ainda mais meu pé.
― Esta noite aquele covarde lhe possuiu pela última vez! ― Levantei minha espada e ia cortar sua cabeça, mas antes da lâmina tocar seu pescoço parei e pensei que enquanto eu não o encontrasse ele sofreria mais se em vez de matá-la eu a violasse. ― Mulher, vai sofrer um castigo pior que a morte, simplesmente por ser a esposa daquele covarde.
Aproveitando sua nudez caí sobre ela e a violei de todas as formas possíveis e imagináveis. Depois de horas, quando a noite já ia caindo, senti uma grande satisfação e minha ira foi lentamente diminuindo. No momento minha sede de vingança estava satisfeita.
― Quando você encontrar aquele ser repugnante diga que o matarei nem que seja meu último ato em vida.
A mulher cometeu um grande erro que trouxe meu ódio de volta e tingiu meus olhos de vermelho. Ela simplesmente relaxou o corpo, passou a mão entre as pernas e sorriu para mim.
Coloquei a força de meu ódio por seu marido na violação de seu corpo e aquele sorriso fez parecer que ela tinha gostado e talvez até houvesse combinado com o biltre para me deter enquanto ele fugia.
Peguei o cajado abandonado e dei uma violenta pancada em uma perna que imediatamente mostrou a ponta de um osso saindo pela carne. Uma segunda pancada acertou o joelho e arrancou um pedaço de osso redondo que voou de encontro ao fogão. Ia dar uma terceira pancada, mas preferi pegar minha adaga e riscar suas faces em forma de xis. O sangue brotou abundantemente em seu rosto e perna.
Apaguei sua beleza e talvez sua vida, mas a visão do sangue acalmou meu ódio e eu saí pela porta afora rindo maquiavelicamente.

   

A visão cessou repentinamente e uma voz bem no fundo de minha mente falou: aguarde!
O suor corria solto pela minha face diante daquelas cenas de extrema violência. Sei que não sou uma pessoa má, mas nunca pensei que um dia pudesse ter sido tão violento. A lembrança daqueles fatos mostrou o quanto já fui mau e o quanto já evolui em direção ao bem.
Como um simples sorriso pode desencadear uma onda de extrema violência? E pensar que a minha jornada ainda está longe de terminar.
Não consegui precisar a época e local desta minha encarnação, mas tudo que narrei era deveras primitivo, as armas, as vestimentas, a casa e até o cavalo.
O espírito é criado simples e ignorante mais aos poucos vai evoluindo em direção ao bem supremo usando seu livre arbítrio[1].
A lei divina de causa e efeito, ação e reação[2] nos diz que tudo que fazemos, de mau ou de bem, retorna para nós na mesma intensidade em que foi produzida, assim minha encarnação no deserto não poderia ser diferente e a maldade que fiz retornou numa outra encarnação vivenciada no mesmo lugar muitos anos depois de minha morte corporal.



[1] O livro dos espíritos, Allan Kardec, Progressão dos espíritos, 114-127.
[2] "Ação e Reação" André Luiz/Francisco Candido Xavier.