Meu nome era Ahmad, forte, olhos e
cabelos pretos, pele meio escura, barba negra tocando no peito e excelente
cavaleiro. Manejava minha espada curva com maestria impondo respeito aos
melhores espadachins do meu tempo.
Naquele dia usava turbante e túnica
azul, calça branca e larga, botas altas até quase os joelhos e montava meu
imenso e musculoso cavalo negro brilhante.
Cavalgava velozmente por uma planície
do deserto escaldante composto de pedras e terra argilosa. A ponta solta do meu
turbante azul agitava nervosamente ao vento denunciando a velocidade vertiginosa
do cavalo e a poeira levantada pelas patas subia e se espalhava pelo ar como um
rabo de cometa.
Minha mão afagava freneticamente o cabo de
minha espada e os meus olhos avermelhados denunciavam o ódio que carregava em
meu peito.
A figura de um homem tomava conta de
minha mente enquanto minha boca espumava de raiva e meu coração desejava fazer
o sangue jorrar de seu coração transpassado pela lâmina de minha espada.
Ao longe começava a surgir a figura
de sua casa no meio do nada. Construída estrategicamente no centro da planície
deserta, deixava ver qualquer um que se aproximava a quilômetros de distância e
a sua cor semelhante ao solo argiloso a deixava quase invisível ao olhar do
inimigo menos atento, mas o ódio era mais forte que a cautela e sabedoria. A
imagem da morada me fazia estimular ainda mais o garanhão desejando que ele
pudesse voar.
O lar do ser odioso ia lentamente aumentando
de tamanho e num olhar mais inquisidor me pareceu que uma nuvem de poeira
levantou atrás da casa. A distância ainda não era propicia para um julgamento
mais severo e logo pareceu que a poeira desvanecera no ar; talvez um pé de
vento agitasse o pó secular.
Meus olhos fixos no caminho
providencialmente desviava o cavalo dos buracos e rochas soltas, evitando um
tombo perigoso, fazia o tempo avançar lentamente. De vez em quando uma rápida
olhada na casa indicava estar no caminho certo.
Uma ave carniceira voava da linha do horizonte
em minha direção parecendo sentir o cheiro do sangue derramado na minha imaginação.
Finalmente a casa surgia em minha
frente e a poucos metros estanquei fortemente o garanhão que deslizou alguns
centímetros levantando poeira e me cegou momentaneamente.
A habitação do desafeto recente tinha
paredes muito grossas construídas com uma mistura de pedras, argila do solo
local e água para não deixar entrar o calor escaldante do dia, o frio gélido da
noite e manter a segurança quando os inimigos estiverem aqui fora.
Uma pequena janela, quase um buraco,
em cada lado e apenas uma porta obstruída por uma grossa porta completava a
segurança do forte domestico.
Circulei em volta sondando o ambiente
e diante da porta saltei do cavalo com a espada numa mão e a adaga na outra. O
silêncio reinava lá dentro e aqui fora só o resfolegar do corcel negro. Lá
atrás da casa uma espécie de baia mal feita e coverta por galhos, que devem ter
vindo de muito longe, estava vazia. Estaria denunciando a ausência do dono?
A porta estava aberta e apenas uma
cortina de couro isolava o interior do resto do mundo. A ausência do cavalo e a
porta aberta: seria uma emboscada? Pensei comigo e cautelosamente levantei a
cortina com um cajado quer achei jogado ao lado da entrada e a muito abandonado
ao capricho do tempo.
Entrei sorrateiramente e assim que
meus olhos acostumaram com a semiescuridão avistei no centro uma armação de
ferro fundido usada como fogão que deixava sair uma leve fumaça de estrume de
cavalo seco queimando em um buraco no chão abaixo dela.
No fundo do recinto sem divisões uma
silhueta delgada e feminina dormia desavisada, inocente e indecentemente numa grande
cama de palha coberta por pedaços de couro. Um tecido de lã cobria o corpo, mas
o rosto e pernas estavam descobertos.
Com o bico de minha bota dei-lhe um
chute numa das pernas à mostra e gritei:
― Levante sua indecente!
A dor e a surpresa a fez ficar em pé
num piscar de olhos. A manta que a cobria caiu revelando seu corpo nu e ainda
esfregando uma mancha vermelha na coxa tentou correr para fora aos gritos.
― Onde pensa que vai infiel!
Dei-lhe novo pontapé que a fez cair em minha
frente de pernas abertas. A luz que entrava por uma das janelas refletia
diretamente sobre seu ventre mostrando a beleza de seu corpo feminino.
Diante de sua beleza revelada pela
luz fiquei momentaneamente sem ação e sem querer falei em voz alta:
― Nossa! É mais jovem e linda que a
mais bonita de minhas mulheres!
Seu corpo estava petrificado de
terror e ela não soltou um som sequer, o que a fez ainda mais bonita.
― Quem é você? Onde está o homem da
casa?
― M-Meu m-marido devia estar aqui?
N-Não o viu?
― Se pergunto por ele é porque não!
Lembrei-me da nuvem de poeira que
pensei ter visto atrás da casa quando ainda estava muito longe.
― O covarde fugiu! Tão covarde que
abandonou a própria esposa.
De repente ela percebeu que estava
nua e tentou pegar a manta, porém pisei rapidamente sobre sua barriga não a
deixando se mover. Ela gritou de dor, mas o sangue ferveu em minhas veias por
ele ter fugido e insensível apertei ainda mais meu pé.
― Esta noite aquele covarde lhe
possuiu pela última vez! ― Levantei minha espada e ia cortar sua cabeça, mas
antes da lâmina tocar seu pescoço parei e pensei que enquanto eu não o
encontrasse ele sofreria mais se em vez de matá-la eu a violasse. ― Mulher, vai
sofrer um castigo pior que a morte, simplesmente por ser a esposa daquele
covarde.
Aproveitando sua nudez caí sobre ela
e a violei de todas as formas possíveis e imagináveis. Depois de horas, quando
a noite já ia caindo, senti uma grande satisfação e minha ira foi lentamente
diminuindo. No momento minha sede de vingança estava satisfeita.
― Quando você encontrar aquele ser
repugnante diga que o matarei nem que seja meu último ato em vida.
A mulher cometeu um grande erro que
trouxe meu ódio de volta e tingiu meus olhos de vermelho. Ela simplesmente
relaxou o corpo, passou a mão entre as pernas e sorriu para mim.
Coloquei a força de meu ódio por seu
marido na violação de seu corpo e aquele sorriso fez parecer que ela tinha
gostado e talvez até houvesse combinado com o biltre para me deter enquanto ele
fugia.
Peguei o cajado abandonado e dei uma
violenta pancada em uma perna que imediatamente mostrou a ponta de um osso
saindo pela carne. Uma segunda pancada acertou o joelho e arrancou um pedaço de
osso redondo que voou de encontro ao fogão. Ia dar uma terceira pancada, mas
preferi pegar minha adaga e riscar suas faces em forma de xis. O sangue brotou
abundantemente em seu rosto e perna.
Apaguei sua beleza e talvez sua vida,
mas a visão do sangue acalmou meu ódio e eu saí pela porta afora rindo
maquiavelicamente.
● ● ●
A visão cessou repentinamente e uma
voz bem no fundo de minha mente falou: aguarde!
O suor corria solto pela minha face
diante daquelas cenas de extrema violência. Sei que não sou uma pessoa má, mas
nunca pensei que um dia pudesse ter sido tão violento. A lembrança daqueles
fatos mostrou o quanto já fui mau e o quanto já evolui em direção ao bem.
Como um simples sorriso pode
desencadear uma onda de extrema violência? E pensar que a minha jornada ainda
está longe de terminar.
Não consegui precisar a época e local
desta minha encarnação, mas tudo que narrei era deveras primitivo, as armas, as
vestimentas, a casa e até o cavalo.
O espírito é criado simples e
ignorante mais aos poucos vai evoluindo em direção ao bem supremo usando seu
livre arbítrio[1].
A lei divina de causa e efeito, ação
e reação[2]
nos diz que tudo que fazemos, de mau ou de bem, retorna para nós na mesma
intensidade em que foi produzida, assim minha encarnação no deserto não poderia
ser diferente e a maldade que fiz retornou numa outra encarnação vivenciada no
mesmo lugar muitos anos depois de minha morte corporal.